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quinta-feira, 5 de junho de 2008

tu surtes, ele surte, nós surtimos...

"Passageiro "surta" e obriga avião a pousar..."

Estava na Folha de terça-feira: "Passageiro "surta" e obriga avião a pousar em Cumbica". Por que as aspas em "surta"?

Quem lê só o título pode imaginar que elas tenham sido empregadas só porque "surtar" não freqüenta as variedades formais da língua, isto é, porque é termo giriesco. De fato é (o "Aurélio" e o "Houaiss" dizem que seu uso constitui "brasileirismo", ou seja, é típico do português brasileiro -o "Aurélio" diz ainda que o termo é típico da linguagem familiar).
Mas de onde teria vindo então o largo emprego familiar ou giriesco do verbo "surtar" com o sentido de "apresentar, mais ou menos repentinamente, sintomas associados às psicoses; ter um surto psicótico" ("Aurélio")? Do substantivo "surto", que, diferentemente de "surtar", ocorre na linguagem específica (da psicanálise, de acordo com o "Houaiss", que define o termo como "crise psicótica caracterizada por maior ou menor grau de desintegração da personalidade e incapacidade de avaliar a realidade externa").
Mais do que comum, o processo (acréscimo do sufixo "-ar" a um substantivo) verificado com "surtar" nesse caso evidencia uma "cizânia" lingüística: um termo ("surtar", no caso) que freqüenta as variedades não-formais da língua cognato de outro ("surto", no caso) que encontra abrigo no padrão formal. Acabamos de ver uma das possíveis razões para o emprego das aspas em "surta" no título jornalístico citado no começo da coluna. Para que fique claro: termos da gíria costumam ser postos entre aspas.
A outra razão (na verdade, uma "co-razão") é o fato de que o caso "morreu" ali, ou seja, não foi expedido nenhum laudo médico que atestasse que o passageiro em questão de fato teve um surto. Moral da história: cautela e caldo de galinha não fazem mal a ninguém... Entre afirmar categoricamente que o passageiro teve um surto (ou "surtou") e apenas dizer que seu comportamento a bordo lembrou um surto, optou-se pela redação mais "prudente" (e daí o emprego das aspas). Cabe aproveitar o fato para lembrar um verbo que pode gerar dúvida em relação à sua flexão. Refiro-me a "sortir", que significa "abastecer", "prover", "variar", "combinar", "misturar". A primeira pessoa do singular do presente do indicativo de "sortir" é "surto" ("Sempre surto a loja com os produtos mais baratos"). E a de "surtar"? Também é "surto" ("Surto com essas coisas").
Da segunda do singular em diante, as flexões seguem caminhos distintos ("tu surtes, ele surte, nós surtimos...", de "sortir"; "tu surtas, ele surta, nós surtamos...", de "surtar"). E o presente do subjuntivo? Bem, aí basta lembrar que esse tempo se forma a partir da primeira pessoa do singular do presente do indicativo, que, como já vimos, é "surto" para os dois verbos. O "detalhe" é que "surtar" termina em "-ar", portanto seu presente do subjuntivo é "que eu surte, que tu surtes, que ele surte, que nós surtemos..." ("Espero que tu não surtes quando ele chegar aqui com a tua ex-namorada"), enquanto "sortir" termina em "-ir", portanto seu presente do subjuntivo é "que eu surta, que tu surtas, que ele surta..."
("Você quer eu que eu surta a loja com produtos mais baratos?").
Por fim, não se pode esquecer que também existe o verbo "surtir", que significa "ter como conseqüência", "produzir ou alcançar efeito". É isso.


PASQUALE CIPRO NETO
Folha de São Paulo, 05/06/2008



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