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domingo, 5 de agosto de 2007

Não posso viver comigo / Nem posso fugir de mim

"Comigo me dasavim" - Pasquale Cipro Neto

EM SEU VESTIBULAR do meio do ano, a Universidade Mackenzie elaborou duas questões sobre estes versos do poeta português Francisco de Sá de Miranda: "Comigo me desavim / Sou posto todo em perigo; / Não posso viver comigo / Nem posso fugir de mim". Em tempos tão sórdidos como os que vivemos neste nefando país (sou brasileeeeeiro, com muuuuuita vergooooonha -que tal o comportamento do público e de certas "glórias" do nosso esporte durante o Pan?) -tempos em que se têm ou só se podem ter certezas ("O homem deve amar a verdade, e não a certeza", dizia meu caro e inesquecível professor João Paixão Netto)-, morro de vontade de falar desses e de outros versos dessa trova do genial Sá de Miranda, cuja segunda estrofe (que a banca não incluiu na prova) assim termina: "Que meio espero ou que fim / Do vão trabalho que sigo, / Pois que trago a mim comigo / Tamanho imigo de mim?".

Sá de Miranda não é vivo, não, nem morreu há pouco tempo. Miranda é contemporâneo de Camões e, como se vê, falava das inquietações e antagonismos que habitam o interior dos indivíduos pensantes. Pois bem. Eu disse que morro de vontade de falar dos mais que atuais e pertinentes versos de Sá de Miranda, mas vou ater-me a dois dos fatos lingüísticos presentes na trova destacada. Um deles é o da palavra "imigo". Sim, "imigo" ("tamanho imigo de mim", lembra?). Trata-se da forma sincopada de "inimigo", que não se usa mais hoje em dia, mas ocorre em autores brasileiros como Casimiro de Abreu e Gonçalves Dias. (A síncope é o desaparecimento de fonemas do interior de uma palavra.) No texto de Sá de Miranda, a forma "imigo" parece ressaltar o antagonismo dos dois "seres" que habitam o interior do poeta, ou seja, parece realçar a idéia de que o inimigo está in/migo, isto é, dentro de cada um de nós. Como se diz na velha Itália, "se non è vero, è ben trovato".

O leitor certamente percebeu que acabei de perpetrar a velha figura da preterição, que consiste em fingir ou afirmar que não se falará de algo de que na verdade já se fala ou falou. Quer outro exemplo? Lá vai: "Não quero me meter na sua vida, mas...".

O segundo fato lingüístico que merece comentário é a forma verbal "desavim" ("Comigo me desavim"). O leitor é capaz de dizer, de bate-pronto, a que verbo pertence a flexão "desavim"? Lá vai uma dica: "vim" é do verbo "vir", "intervim" é de "intervir", "provim" é de "provir", portanto "desavim" é de... É de "desavir", cujo "ato de" é traduzido pelo substantivo "desavença", que nada mais é do que uma discórdia, querela ou dissensão, isto é, um conflito.

O leitor pode ter estranhado a forma "desavim" e suas "primas" (como "provim"). Esse estranhamento talvez se explique pelo uso pouco freqüente dessas flexões e pela não-associação imediata com a matriz da família (o verbo "vir"). Na língua culta, "vir" é a base da flexão de "intervir", "provir" ou "desavir" (venho/ intervenho/provenho/desavenho; vim/intervim/provim/desavim). Há algum tempo, a Fuvest pediu aos candidatos que substituíssem "nascer" por "provir" no verso "Eu nasci com o samba", da antológica canção "O Samba da Minha Terra", de Dorival Caymmi. A resposta? Lá vai: "Eu provim do samba". É isso.



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