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sábado, 10 de novembro de 2007

O erro dos McCann.

JOÃO PEREIRA COUTINHO
Chora, coração

UM AMIGO paulistano contava-me em tempos que o grande problema do Brasil era a "inveja espiritual". Parei, afinei o ouvido e perguntei de volta: "Inveja espiritual?". Ele explicou: nós podemos ter inveja da casa do vizinho. Do carro. Da carreira. Da mulher.
Mas "inveja espiritual" é coisa mais sofisticada: é ter inveja do próprio vizinho. Da capacidade dele para suportar o infortúnio com a dignidade intocada.
Onde estão as lágrimas? O choro? As ameaças de suicídio e de homicídio (não necessariamente nessa ordem)? Não estão. Como diria Hemingway, ele tem graciosidade sob pressão.
A "inveja espiritual" é a inveja que sentimos quando vemos um adulto comportar-se como adulto.
Fiquei a pensar na história e a história, como a inveja, atacou-me quando regressei a Portugal depois de uma longa vadiagem pelo Brasil. E tudo por causa do caso McCann. Caso tenham estado em Marte nos últimos seis meses, uma criança inglesa de 4 anos, Madeleine McCann, desapareceu de um complexo turístico no Algarve no dia 3 de maio. Foi seqüestro? Homicídio?
Isso não é importante. Importante é a reação da imprensa tablóide portuguesa, que rapidamente começou a amplificar o sentimento dos populares. Desde a primeira hora, os pais são suspeitos. Suspeitos, vírgula, culpados. Não necessariamente pelas provas que a polícia judiciária recolheu e que até podem apontar para uma suspeita legítima (eu, honestamente, não faço a mínima idéia). Falo do povo. Falo da voz do povo. Os pais são culpados porque parecem culpados.
E parecem culpados porque não choram como deveriam. Não gritam como deveriam. Não se comportam histericamente como deveriam. Pelo contrário: com a fleuma britânica que é típica da espécie, dão entrevistas aos jornais. Fazem campanhas na internet. Procuram a filha pelos quatro cantos do mundo. Agem racionalmente, mantendo a graciosidade possível. A pergunta é inevitável: que pais são esses que, perante o desaparecimento da filha, não afundam na depressão e na miséria?
O povo gosta de ver sangue. Mas, melhor que sangue, o povo gosta de ver lágrimas. O principal erro dos pais não foi ter deixado os filhos sozinhos no apartamento -Madeleine e dois gêmeos, ambos com 2 anos -enquanto jantavam com amigos a poucos metros. O erro principal dos McCann é não terem sido um bocadinho mais brasileiros.
Ou, então, um bocadinho mais portugueses: fatalistas, lacrimejantes e dramáticos.
O caso é sobretudo válido para a mãe. Em declarações aos jornais britânicos, Kate McCann confessou que lamentava não ser gorda e feia para que os portugueses gostassem mais dela. Um erro, minha senhora. O problema não é ser magra e bonita. O problema é não ter umas lágrimas para oferecer a platéias esfomeadas. Se lágrimas houvesse, até as maiores barbaridades seriam perdoadas. Ela matou a filha/vendeu a filha/fez da filha um sanduíche? Ah, mas chora, coitadinha.
A inveja espiritual não começou no Brasil. Como a língua e a Carmem Miranda, ela é herança de um pai só.



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