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terça-feira, 20 de novembro de 2007

Comentário: Dia da Consciência Negra

Bob Dylan
JOÃO SAYAD


EXISTEM fantasmas? Claro que existem. Têm existência menos tranqüila do que as pedras que aparecem no nosso caminho, mas que existem, existem. Há várias formas de existir. Num extremo, fantasmas. No outro, pedras.

Existem nações e fronteiras. As nações têm existência mais tranqüila do que as fronteiras. São feitas de língua, história e afeto. Fronteiras são inventadas. São criações abstratas de generais, diplomatas e agrimensores que usam rios e montanhas para que nós acreditemos que existam.

Mas bois, vacas e vaqueiros não acreditam.

Não existem raças. São fantasmas.

Existe racismo. Duro como uma pedra. Para que existam raças, foi preciso um decreto nazista que definia como judeu quem tinha pelo menos uma avó judia. Para os judeus, judeu é o filho da mãe judia. Embora não saibamos definir exatamente o que é um judeu, sabemos que o número de judeus tem diminuído no mundo inteiro. Atualmente, judeu é o povo escolhido por Deus.

Mesmo assim, Robert Zimmerman adotou o nome de Bob Dylan. Allan Königsberg mudou o nome para Woody Allen. Tony Curtis foi batizado ao nascer como Bernard Schwartz, Kirk Douglas é Danielovitch Demsky, Jerry Lewis é Joseph Levitch. E Winona Ryder é de verdade Horowitz. O show business americano abomina nomes judeus.

Podemos combater o racismo de duas formas. Primeiro, é possível acentuar a diferença da cor da pele, do tipo de cabelo, do formato do nariz.

Foi a escolha inevitável dos americanos. Deram força à existência da raça e criaram fronteiras como o arame farpado e os muros que construíram nas fronteiras mexicanas. Criaram cotas para reduzir a discriminação e facilitar o acesso dos estudantes negros às universidades.

Os negros brasileiros são vítimas do racismo. Podemos escolher dois caminhos para combater o racismo. O caminho americano é criar uma identidade afro-brasileira, reafirmá-la e diferenciá-la da identidade dos outros brasileiros. Não sei se vai dar certo no Brasil.

Somos um país de negros e brancos de todas as cores. A solução para o nosso caso pode ser diferente. Por isso, para comemorar o 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, o governo do Estado de São Paulo pendurou fotos imensas de personalidades brasileiras que ou têm pele mais escura, ou cabelo crespo, ou que são descendentes de escravos. Em muitos casos, esquecemos de propósito ou não nos ensinaram que eram negros. Você sabia que Teodoro Sampaio, um dos fundadores da Poli, era negro? Olhe a foto.

Procuramos fotos em que os traços fisionômicos negros são acentuados. Traços que as gravuras de muitos livros não mostram. Muitas vezes, Carlos Gomes é desenhado com os cabelos ao vento como se fosse um compositor italiano nascido em Campinas. Não é surpresa que um brasileiro com grande talento musical seja negro.

Achamos uma foto de Castro Alves com um chapéu antigo e estranho em que o cabelo crespo insubordinado escapa pelos lados e explode nas têmporas do poeta. A foto de Mário de Andrade moço e antes de ficar careca, com a testa larga emoldurada pelo cabelo crespo, para que nos lembrássemos de que o intelectual e poeta era negro. E já tivemos um negro, Nilo Peçanha, presidente da República.

São 20 fotos imensas que ornamentam 20 prédios públicos e diversos cartazes nos metrôs, ônibus e trens metropolitanos.

É homenagem singela que o governo do Estado presta a brasileiros ilustres cujos traços africanos foram esquecidos pelos desenhistas ou desapareceram em outras fotografias. Não é preciso ser contra as cotas para negros nos vestibulares. Desde que Gisele Bündchen possa se autoclassificar como negra como se fosse Camila Pitanga. As cotas são um pequeno gesto de carinho e de compensação para os descendentes dos escravos brasileiros. Devemos muitos outros gestos de compensação.

A "instalação" que ornamenta os prédios e o transporte público do Estado de São Paulo lembra a origem desses brasileiros. A idéia é criar confusão -que ninguém saiba no futuro quem é negro e quem não é no Brasil.

E que, daqui a um século, a comemoração do Dia da Consciência Negra possa pendurar fotos de afro-alemães, afro-turcos, afro-italianos e afro-japoneses. Que todos se declarem negros no vestibular, sejam admitidos na universidade e vivam felizes para sempre, com olhos puxados, narizes aduncos, quipá e cabelo crespo. Que o número de brancos ou de negros, tanto faz, diminua. Que raças não existam mais -nem o racismo.

Fonte: Folha de S. Paulo - 20/11/2007

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